Povos Escravizados da África
Povos escravizados
Entre os séculos XVI e XIX, o tráfico de seres humanos afetou muitos povos que habitavam a Africa subsaariana. Embora fossem todos africanos, esses povos eram muito diferentes entre si. Línguas, ritos, crenças, costumes e formas de organização política variavam bastante de um lugar para outro. Dentre os povos que foram trazidos para a América Portuguesa, predominaram os falantes da língua bantu (genericamente chamados de bantos) e os iorubas.
Os povos bantos
Embora houvesse muitas diferenças entre os vários povos de língua bantu, eles compartilhavamcaracterísticas comuns. Uma das mais importantes era terem um tipo de organização social assentada sobre a unidade familiar, nos laços de parentesco e de solidariedade. Um chefe de família procurava ter muitas esposas e gerar uma prole numerosa. Os filhos garantiam o amparo na velhice e a preservação da linhagem. Por essa razão, virilidade e fertilidade eram qualidades desejadas, respectivamente, nos homens e nas mulheres.
Além da prole, os núcleos familiares bantos contavam com a participação de escravos, geralmente prisioneiros de guerra. Esses escravos eram, preferencialmente, mulheres, pois, além de multiplicar a força de trabalho do grupo, contribuíam com seu crescimento ao gerarem descendentes.
Os bantos se dedicavam principalmente à agricultura e, entre eles, a terra era um bem coletivo. Cada chefe de família recebia um lote para ser cultivado e, em troca, pagava ao soba, líder local, tributos em forma de prestação de trabalhos ou em produtos.
Os povos bantos também desenvolveram a metalurgia e o comércio. Em muitos lugares, criaram importantes centros urbanos, com plantas geométricas, onde se distribuíam mercados, portos, locais de culto e palácios cercados por paliçadas ou muralhas.
A maioria dos bantos praticava uma religião em que se cultuavam os antepassados e as entidades associadas às forças naturais. Um traço forte da religião era o uso de imagens e bjetos, os inquices, como suporte das forças sobrenaturais.
Feitas por sacerdotes especializados, eles seriam capazes de colocar o mundo material em contato com o além, de modo que mobilizasse as forças espirituais a serviço das necessidades e dos desejos humanos. Os rituais bantos incluíam sacrifícios animais e, em alguns casos, humanos, como em Bissau e na Costa do Ouro.
O termo ioruba também é usado para designar um conjunto de povos com língua e cultura aparentadas que se estabeleciam no delta do rio Niger. Organizavam-se em cidades populosas, nas quais as atividades comerciais tinham importância fundamental, mas também praticavam a agricultura. As cidades, apesar de terem governos autônomos, mantinham vínculos entre si e estavam sob a influência dos centros de Oió e Ifé, esta última tida como cidade sagrada e berço de todas as demais cidades iorubas.
Em Ifé, havia uma monarquia de caráter religioso, personificada no oni. Ele representava os deuses e governava um conjunto de aldeias, cujos chefes dependiam de sua aprovação para exercerem o poder. O oni vivia afastado do litoral, num palácio fortificado, cercado por muitas esposas e auxiliares.
Ifé perdeu importância econômica a partir do século XVI, quando os núcleos urbanos mais próximos do litoral começaram a prosperar em função dos contatos comerciais com os portugueses. Todavia, ainda se manteve como importante centro de referência religioso e político para as demais cidades iorubas nos séculos seguintes.
Entre os iorubas, assim como entre os bantos, os laços de parentesco eram muito importantes e a família era a base da organização de toda a sociedade. Porém, enquanto entre os bantos a linhagem era transmitida pela mulher, entre os iorubas a descendência era patrilinear — quer dizer, transmitida pelo homem.
A religião assentava-se sobre o culto aos orixás, antepassados deificados e divindades criadas por Olorum, o deus supremo. Esses orixás relacionavam–se a forças específicas da natureza, como o raio e o trovão, e regiam aspectos determinados da vida na terra, como a justiça e a saúde. Em suas crenças, davam destaque especial à cabeça (ori), pois acreditavam que nela estava a essência do indivíduo, sua alma e a ligação com o mundo dos orixás.
O reino do Congo
Começava o ano de 1483 quando o explorador português Diogo Cão atingiu a foz do rio Zaire (hoje conhecido como rio Congo), onde travou contato com o mandatário local, que, como outros chefes da região, devia obediência a uma autoridade superior, o manicongo — uma espécie de rei que liderava uma confederação de aldeias, às quais oferecia proteção e auxílio em troca do pagamento de tributos e de exércitos para as guerras.
Estima-se que a população do Congo ultrapassava 2 milhões de habitantes no fim do século XV, a maior parte pertencente a grupos da etnia banto. As principais riquezas eram o cobre e o marfim, além do nzimbu, espécie de búzio que fazia as vezes de moeda e cuja exploração era monopólio real. Um comércio intenso de sal, metais, tecidos e produtos de origem animal garantia a prosperidade do reino e a riqueza de suas principais cidades.
Em 1491, o manicongo Nzinga Nkuvu converteu–se ao cristianismo e foi batizado com o nome do rei de Portugal, D. João. Seu sucessor, Affonso I, mostrou-se fervoroso cristão e esforçou-se por estreitar os laços com os portugueses, de quem emprestou muitos hábitos e comportamentos. A capital do reino, Mbanza Congo, passou a se chamar São Sebastião.
O estabelecimento dessa aliança com os portugueses não era, contudo, desinteressada. O que o manicongo buscava era fortalecer o reino em relação aos vizinhos, apoiado nas contribuições técnicas e no auxílio militar português.
Todavia, essa aliança tinha um preço: à medida que o tráfico humano se intensificava e o escambo se ampliava, as elites tornavam-se cada vez mais dependentes daqueles artigos.
Desse modo, com a finalidade de obter maior quantidade de produtos trazidos pelos europeus, os chefes congoleses, em busca de cativos, passaram a investir continuamente contra reinos vizinhos e contra os povos que viviam no interior do continente. Não tardou, inclusive, para que encontrassem mecanismos para reduzir até mesmo seus pares à escravidão.
Os manicongos chegaram até a fazer esforços para conter o avanço da escravização. Contudo, esbarravam na resistência das elites, que não pretendiam abrir mão dos benefícios obtidos com o negócio do tráfico, e dos próprios traficantes nativos e europeus. A partir do fim do século XVII, a autoridade do manicongo decresceu sensivelmente e o poder político se fragmentou. Paralelamente,
cresceu a influência portuguesa na região, culminando com a ocupação do litoral e, a seguir, de São Salvador, no século XIX.
As transformações resultantes do tráfico
O incremento do tráfico de escravos produziu uma série de transformações na organização social das populações africanas. Em primeiro lugar, estimulou as guerras entre os povos e os reinos. Essas guerras, potencializadas pelo uso das armas de fogo e associadas às doenças introduzidas no continente pelos europeus, levaram a uma sensível redução demográfica em várias partes do continente.
Além disso, perseguidos pelos traficantes de escravos, muitos grupos foram obrigados a se deslocar para lugares distantes daqueles onde estavam habituados a viver e para os quais haviam desenvolvido técnicas e estratégias de sobrevivência. Isso desorganizou a sociedade e, muitas vezes, colocou-os em situação de enfrentamento com outros povos, com os quais precisaram disputar territórios.
As incursões dos traficantes também causaram grande desorganização das economias locais. Muitas comunidades tornaram-se incapazes de produzir o próprio sustento e passaram a ser vitimadas pela carestia e pela fome.
Ao lado disso, no interior dos Estados africanos que se associaram ao tráfico de escravos, cresceu a desigualdade social. Graças aos lucros, formaram-se grupos abastados e ligados aos esquemas de captura, transporte e comercialização de cativos.
A essas elites integraram-se muitos descendentes de europeus, que haviam se estabelecido na África e firmaram laços com chefes locais, geralmente por meio de casamentos. Vivendo entre dois mundos (o europeu e o africano), esses mestiços eram bastante hábeis como intermediários entre as autoridades locais e as estrangeiras. Tal papel transformou-os em sujeitos influentes, capazes tanto de desestabilizar o governo de um chefe ou rei local que tentasse lhes impor limite, quanto prejudicar os planos de um Estado europeu que porventura ameaçasse seus negócios.
Outro efeito do crescimento do tráfico de escravos foi o desequilíbrio de forças entre os reinos e as cidades africanas. A concentração de riqueza e poder nos estados que mantinham contato com o tráfico fez com que desbancassem reinos importantes de outrora. Assim, por alguns séculos, alguns Estados africanos, como o reino de Daomé, transformaram-se em verdadeiras potências no continente.
Não podemos desprezar ainda o fato de a escravidão ter rompido as redes de parentesco e de solidariedade que sustentavam a base das sociedades africanas. Com essa ruptura, valores e costumes tradicionais também foram profundamente abalados.
Escravo negro, escravo e negro?
Várias sociedades antigas conheceram o regime da escravidão. Egípcios, gregos e romanos, entre outros, fizeram uso do trabalho de cativos. Em todas essas sociedades, o que caracterizou esse sistema de trabalho foi o fato de o escravo não ser senhor de si. Ou seja, era uma propriedade e, como tal, podia ser vendido, emprestado, alugado ou herdado. Contudo, não existia nenhuma relação entre cor de pele e escravidão. Escravos podiam ser brancos, negros ou asiáticos. Podiam ser de qualquer sexo e origem.
Foi somente com a introdução do comércio de cativos na costa atlântica da África, a partir do século XV, que a escravidão passou a ser associada à cor da pele. Ser negro se tornaria sinônimo de escravo.
A escravização das populações da África Negra logo seria justificada por diversas teorias, desenvolvidas por viajantes, religiosos e pensadores europeus. Por mais de três séculos, o comércio entre a África e a América foi intenso. Como conseqüência, dos dois lados do Atlântico criou-se um intenso vínculo marcado por fluxos constantes de mercadorias, pessoas e, sobretudo, costumes e tradições culturais.
Não raro, famílias de comerciantes espalhavam-se pelo litoral e as terras dos dois continentes, muitos vinculados ao tráfico de escravos. A trajetória de Francisco Félix de Souza serve de exemplo desses vínculos a unir as populações espalhadas ao longo do Atlântico Sul.
Outra dessas teorias sustentava que os negros pertenciam a uma espécie humana inferior, próxima à animalidade, e que por meio da escravização poderiam ser introduzidos no mundo considerado civilizado. Ou seja, a condição de escravos os tiraria da selvageria em que se encontravam, sendo, nesse sentido, benéfica.
Entre as teorias mais difundidas, uma afirmava que os negros seriam descendentes de Cã, que depois de desonrar o pai foi expulso para terras distantes do sul, onde ó sol escaldante teria deixado a pele de seus descendentes negra. Amaldiçoados por Noé, estes estariam condenados a se tornar escravos dos irmãos de Cã e de seus descendentes.
Também fundamentada na religião, uma terceira justificativa para a escravização dos negros apoiava-se na crença de que a pele escura era sinal da alma pecadora e que, por meio do trabalho forçado, ela se purificaria. Para reforçar essa imagem, não faltaram descrições da natureza africana que associavam insistentemente esse continente ao Inferno.
Todas essas justificativas, no entanto, foram forjadas para legitimar a crescente demanda por mão de obra para abastecer as colônias europeias na América e nas ilhas atlânticas. Cientes disso, alguns indivíduos, quase sempre padres, opuseram-se à escravização dos africanos. Durante séculos, foram vozes isoladas. Somente a partir do fim do século XVIII encontrariam eco nos primeiros autores influenciados pelo Iluminismo.
Contudo, as críticas ao trabalho escravo não poriam fim ao preconceito construído contra os negros, e as antigas justificativas para a escravização acabariam dando lugar, no século XIX, a uma ideologia elaborada para permitir a exploração do continente africano pelos países imperialistas em franca expansão e com suas práticas capitalistas. De acordo com as novas teorias, os negros seriam como crianças ingênuas, incapazes de tomar conta de si e de aproveitar de maneira racional os recursos dos quais dispunham. Caberia então aos povos que se consideravam “civilizados” — e brancos — assumir a missão de tutelar os negros africanos, bem como administrar suas riquezas, conduzindo-os à vida dita “civilizada”.